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O que aprendi com a dor e o medo

Atualizado: 6 de set. de 2023

Era um final de domingo, no verão de 2020, quando um simples acidente doméstico deu uma guinada na minha vida. Eu estava saindo do banho, os pensamentos voando longe, e de repente ao pisar fora do box, meu pé, ainda molhado, não parou. Escorreguei e comecei a sentir algo se rasgando dentro da minha perna esquerda. Quase desmaiei de dor. Fui socorrida pelo marido e pela filha. Estava muito assustada. O que havia acontecido com meu joelho esquerdo?


Anatomia de Joelho para representar o local do tendão do quadríceps, logo acima da patela.

Após o choque comecei a entender que o estrago parecia grave e fui para a emergência. Lá constataram que não havia fratura óssea. A princípio pareceu uma boa notícia.

Posteriormente fiz uma ressonância magnética cujo laudo foi: ruptura de 85% do tendão do quadríceps. Esse é o tendão que liga a coxa ao joelho. Eu não sentia dor, mas não também não movimentava o joelho. O tratamento era cirurgia de correção. O prognóstico era bom. Mas, eu não fazia ideia do que estaria por vir. É aqui que a história começa.


Confusão mental

Logo após o procedimento cirúrgico, quando eu ainda estava na sala de recuperação, comecei a sentir uma dor lancinante para qual o analgésico prescrito era a morfina. Apesar de ter sido uma cirurgia ambulatorial, ou seja, fui para casa no mesmo dia, meu corpo estava em luta. Nada parava no estômago, eu estava desidratada, sentindo muita dor e desconforto. O médico havia receitado oxicodona, mas eu tomei apenas três comprimidos, porque ficava chapada e aquilo não estava me ajudando. Eu precisava começar a melhorar. Os pensamentos eram conturbados, eu só conseguia sentir pena de mim, estava irritada e com raiva.


As primeiras 48 horas após a cirurgia foram um pesadelo. O coração acelerado e a ansiedade nas alturas.

Então, me lembrei que talvez meditar e coordenar a respiração pudesse ajudar a me acalmar, já que eu definitivamente não queria seguir com a oxicodona. E com a mente mais clara comecei a pensar no que meu corpo estava enfrentando e como eu poderia ajudá-lo. Entendi que tudo estava fora de equilíbrio e eu precisava me organizar internamente. E foi assim que comecei a tratar o corpo e a mente. Parei de me culpar pelo ocorrido. Me convenci de que havia sido um acidente. Aceitei a ajuda que estava recebendo e comecei a focar na recuperação. Ou seja, parei de olhar para trás e comecei a me dedicar ao propósito de melhorar, um pouquinho a cada dia. Foi uma sábia decisão, mas eu ainda teria muitos obstáculos pela frente.


Mulher em pé apoiada em muletas com a perna esquerda imobilizada para não dobrar o joelho.

A dor e o medo

Passados 66 dias desde o acidente, com a perna totalmente imobilizada, finalmente fui liberada para começar a tão esperada fisioterapia. Até então, eu não sentia nenhuma dor, já havia me acostumado com o imobilizador que só era retirado para eu tomar banho. Havia aprendido a andar de muletas e estava adaptada àquela nova situação. E foi ali, no começo da fisioterapia, que me dei conta do tamanho do estrago e conheci os dois grandes adversários que me acompanhariam por um longo tempo: a dor e o medo.

Medo de me abaixar, de pular, de subir e descer escadas e de atravessar a rua. Tive que reaprender a fazer tudo isso. O trabalho do fisioterapeuta era restaurar a função neurotransmissora, porque eu dava o comando com o cérebro, mas o movimento não acontecia. Era bizarro. Por meses achei que nunca mais iria subir ou descer escadas normalmente, que sempre ia mancar ou me segurar no corrimão.



“O que te faz mais forte” Durante o período da fisioterapia li o livro “O que te faz mais forte”, de Jeff Bauman, adaptado para o cinema em 2018. Para quem não sabe, este livro conta a história verídica do cara que perdeu as duas pernas durante o atentado a bomba que ocorreu na maratona de Boston, em 2013. Bauman relata tudo o que passou desde o momento em que viu o terrorista, sentiu a explosão e foi socorrido. Fala sobre a longa recuperação, as sessões de fisioterapia, a adaptação às próteses e os desafios que ele enfrentou, afinal de contas, a sua vida havia se transformado completamente. Esta leitura em especial me ajudou muito. Ver o sofrimento do Jeff, que em alguns momentos era similar ao meu, obviamente guardadas as devidas proporções, foi crucial para eu me manter focada na recuperação, não cair na tentação de me vitimizar, além de ser grata por preservar ambas as pernas e ter a possibilidade de me recuperar completamente.


Capa do livro "O que te faz mais forte" com homem caucasiano de cabelos escuros e camiseta azul, próteses nas pernas dos joelhos para baixo e apoiado em uma barra de fisioterapia.

Um movimento chamado “ganho passivo”

Nos primeiros meses de fisioterapia, o profissional precisava fazer um movimento chamado de ganho passivo de amplitude de movimento, que consistia em aplicar uma pressão para aproximar meu calcanhar do glúteo, ou seja, ela tinha que dobrar minha perna. Porém, a dor que vinha desse movimento era excruciante. Cada vez que eu tinha que passar por aquilo era como se eu estivesse prestes a entrar para uma micro sessão de tortura, porque eu sabia que ia doer muito. Nesses breves momentos, que pareciam uma eternidade, eu me lembrava da sensação reconfortante de um banho de mar maravilhoso que tomei na praia de Morro do São Paulo, na Bahia. Ao me transportar para lá, eu sentia a dor obviamente, mas de alguma forma essa imagem me ajudava a suportar aquele momento. O período de fisioterapia durou um ano e três meses.




Importante: Voltando à questão da tortura, reafirmo que não há comparação possível, pois eu só faço uma vaga ideia do que é uma pessoa ser torturada porque assisti, ao vivo, o depoimento de uma vítima da ditadura militar brasileira. Eu jamais teria o direito de me comparar, nem a uma tortura, nem ao que o Jeff Bauman passou.


“Não é sobre o que a vida faz comigo, e sim sobre o que eu faço com o que a vida faz comigo.”

O que aprendi com a dor e o medo

Enfim, foi um longo período com desafios e aprendizados. Por diversas vezes tive que fazer aquele movimento de clarear a mente, conforme relatei lá no início do texto, só que em vez de olhar para trás com culpa eu olhava para o quanto já tinha avançado e isso me dava forças para seguir em frente, com paciência e perseverança. Aprendi a enfrentar os medos, suportar as dores e, principalmente, confiar no processo. Recuperei 100% do movimento, tenho uma vida normal novamente. O desejo de voltar a correr foi um dos meus maiores motivadores ao longo do tratamento. Infelizmente ainda não pude voltar. Mas confesso que não tentei de fato. Resquícios do trauma.


Com esse texto quis apresentar uma pequena, mas importante parte da minha vida, para mostrar que a nossa vida é feita de momentos, fases, desafios e superações. Além disso, também mostrei como um livro me ajudou imensamente no processo de recuperação. Talvez uma pessoa que nunca tenha passado por um trauma ortopédico não vá ter tanta identificação com o processo do Jeff Bauman. Mas, há outros tantos que, assim como eu, hão de tirar lições valiosas da história dele.


Já pensou em quantas lições valiosas, com a sua história de vida, você tem para compartilhar?


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